Brasil
‘Expôs a própria mulher e outras pacientes’
Conduta do profissional é investigada pelo Cremesp e por hospitais onde trabalha após denúcia da influenciadora digital Shantal Verdelho sobre violência vivida durante o parto vir à tona
Após virem à tona os relatos de violência obstétrica e de machismo por parte do médico Renato Kalil, de 59 anos, expostos pela influenciadora digital Shantal Verdelho — e posteriormente também pela jornalista britânica Samantha Pearson, do Wall Street Journal, que alega ter sofrido episódios de assédio moral —, quem também se manifestou foi a escritora Tati Bernardi. Ela lamentou que outras mulheres tenham passado por esse tipo de agressão no consultório de Kalil, em São Paulo, mas comemorou a exposição sobre a conduta do obstetra e narrou uma situação que vivenciara com ele, com contornos muito parecidos com o que as outras mulheres contaram.
“Triste por elas, mas feliz por finalmente isso ter vindo à tona. Fui em uma única consulta com esse médico e nunca mais voltei. Ignorou o que eu falava e só falava dele mesmo. Expôs a própria mulher e outras pacientes em histórias que contou”, disse a autora. “Não quis me examinar porque a equipe dele fazia isso para ele, que era chique demais para pré-natal (ainda bem que nunca colocou a mão em mim)”.
Bernardi revelou ainda que ele era um dos médicos citados por ela numa crônica que escrevera na Folha de S. Paulo, onde é colunista, em 2017. No texto, entitulado “Dr. Machismo”, ela narrava a sucessão de más — e constrangedoras — experiências com obstetras. Na crônica, ela relata dois médicos homens que disparam piadas machistas sobre a inteligência da mulher, e também uma doutora mulher, que aconselha que, grávida, ela continue bonita para o marido.
“Ouvi de amigas que ele (Kalil) sempre dava “o pontinho do marido” depois do parto para a vagina ficar mais apertadinha, e nunca mais pisei lá. Na época escrevi uma crônica para a Folha contando a experiência, mas sem dar nomes, e ele ficou doido, falando mal de mim para as pessoas próximas” conclui Tati Bernardi.
Investigado pelo Conselho após denúncia vir a público
O médico Renato Kalil já esta sendo investigado pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), que diz que o processo é sigiloso, e também pelos hospitais São Luiz e Einstein, onde ele atua. O caso veio à tona após um vídeo enviado por Shantal Verdelho mostrar uma conduta machista e agressiva do médico durante o parto de sua filha, Domênica. “Faz força, porra” é uma das frases ditas pelo ginecologista e obstetra no parto da influenciadora, que durou cerca de 48 horas.
Um áudio vazado tem outros palavrões atribuídos a Kalil, que também aparece criticando a forma como Shantal faz força. A influencer responde, na gravação: “Eu estou fazendo. Eu sou a maior interessada nisso”.
— Ele me xinga o trabalho de parto inteiro. “Filha da mãe, ela não faz força direito. Viadinha. Que ódio. Não se mexe, porra”. Depois que revi tudo, foi horrível — comentou a influencer, que tem mais de 1,5 milhão de seguidores.
Na mesma gravação, Shantal conta que Kalil não teria gostado de sua recusa em realizar a episiotomia, procedimento cirúrgico no períneo para facilitar a passagem do bebê. E acrescenta que Kalil falou de sua vagina para terceiros, perante o marido.
— Tem o vídeo dele rasgando com a mão, a bebê não estava nem com a cabeça lá, não tinha a menor necessidade, era só para eu ficar toda arrebentada e ele falar “viu como precisava” — relata a influenciadora. — Ele chamou meu marido e falou: “Olha aqui, toda arrebentada. Vou ter que dar um monte de pontos na perereca dela”.
Em nota, Kalil disse que tem 36 anos de experiência e defendeu seu trabalho no nascimento de Domênica. “O parto da sra. Shantal aconteceu sem qualquer intercorrência e foi elogiado por ela em suas redes sociais durante trinta dias após o parto”, afirma o comunicado, que diz que o vídeo é “editado, com conteúdo retirado de contexto”. “A íntegra do vídeo mostra que não há nenhuma irregularidade ou postura inapropriada durante o procedimento. Ataques à sua reputação serão objeto de providências jurídicas, com a análise do vídeo na íntegra”, diz a nota em nome do obstetra.
‘Ele contava intimidades de outras pacientes e da própria mulher’
A jornalista britânica Samantha Pearson, correspondente no Brasil do jornal The Wall Street Journal, foi paciente de Renato Kalil e disse ter sofrido assédio moral, principalmente na gravidez de sua segunda filha, nascida 2019.
Em 2015, Samantha procurou Kalil na reta final porque queria evitar uma cesariana e tinha boas referências do médico. O primeiro balde de água fria foi no parto. Samantha optou por não ser anestesiada e ouviu quando Kalil disse ao seu marido que tinha “feito um ponto ali, que ele não ficasse preocupado, porque tava tudo bem”.
— Ele falava sobre a minha vagina como se eu não estivesse ali. Passei semanas chorando sozinha em casa, sem saber se ele tinha dado mais pontos do que o necessário, com medo de transar, de sentir dor. Fui a outros médicos para saber se isso podia ser checado, mas não podia — lembra.
Samantha se convenceu em 2019 do atendimento impróprio. Em consulta no oitavo mês de gestação e na frente de sua equipe, Kalil comentou: “Samantha, você vai ter de emagrecer porque senão seu marido vai trair você”.
A jornalista, de 39 anos, diz que, ainda no consultório, chorou, quando ficou sozinha para trocar de roupa. Ela sofrera anorexia na adolescência e o comentário a convenceu a não seguir com Kalil no segundo parto.
— Hoje percebo que eu não era a gringa maluca, eu estava certa, nada daquilo era normal. Ele disse aquilo na frente de sua equipe, eu estava quase nua, totalmente exposta. Percebi que o que ele queria o tempo todo era agradar meu marido, como se eu, a paciente, não estivesse lá — conta.
Kalil, acrescenta Samantha, afirmou que “as mulheres no Brasil estão desesperadas porque tem cada vez mais veados”. Em uma mensagem de áudio enviada à jornalista alguns meses depois, quando percebeu que Samantha não estava mais indo a seu consultório, o médico afirma que “quis fazer uma brincadeira porque ele está todo sarado, bonitão, cuidando dele e do corpo dele, era um elogio pra ele”.
— Em cada consulta vivia coisas muito ruins. Ele contava intimidades de outras pacientes e da própria mulher. Muitas vezes, as pacientes das quais falava estavam na sala de espera — diz.