Geral
DF registra 109 casos de feminicídios desde a mudança na legislação
Elas foram mortas, na maioria das vezes, dentro de casa, por maridos ou ex-companheiros, motivados por ciúmes ou sentimento de posse
Desde que entrou em vigor a Lei do Feminicídio, há cinco anos, 109 mulheres morreram em contextos de violência doméstica no Distrito Federal. A maioria, assassinadas em casa, por companheiros ou ex-maridos motivados, em mais da metade dos casos, por ciúmes ou sentimento de posse. Jovens, mais velhas, de diferentes classes sociais, moradoras de áreas nobres ou de regiões afastadas do centro. Nenhuma condição se mostrou capaz de impedir os crimes. Todas foram vítimas do machismo.
Os dados, de levantamento obtido com exclusividade pelo Correio, são resultado da análise de 101 dos feminicídios que ocorreram na capital federal entre 9 de março de 2015 a 31 de janeiro de 2020, realizado por meio da criação da Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios (CTMHF), da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal.
Para Anderson Torres, secretário de Segurança Pública, é necessário ajuda de toda a sociedade para coibir esse tipo de crime, além de esforços para mudar a cultura de violência. “Precisamos que a sociedade mude, e a Secretaria está avançando nisso. O que pensamos é na conscientização das crianças e dos jovens, mudando a perspectiva para o futuro. A nossa geração é mais difícil. Vemos isso nas estatísticas. São números que chocam e crimes bárbaros”, acrescenta.
O estudo mostra ainda que 79,2% das vítimas de feminicídio não haviam registrado ocorrência pela Lei Maria da Penha nas delegacias. Dessas, 64% sofreram agressão antes do assassinato. Além disso, depoimentos de familiares, de amigos e de vizinhos também expuseram que 61,4% dessas vítimas viviam um ciclo de violência.
Por isso, Ana Cristina Melo Santiago, ex-chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), atualmente à frente da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), frisa a importância das denúncias por parte de terceiros, mas também ressalta a necessidade de a própria vítima tentar dar o primeiro passo. “Nós temos a Lei Maria da Penha, que estabelece uma rede de ajuda e enfrentamento à situação, não é apenas a punição. Essa mulher precisa entender que denunciar não é necessariamente um pedido de divórcio, essa é uma decisão única de cada uma. Ela precisa enxergar que está em um contexto de vulnerabilidade e precisa de ajuda. Se, posteriormente, ela entender que deve se separar, tudo bem. Se não, também não há problema. Não cabe a nós esse questionamento”, afirma.
“Temos uma naturalização e banalização da violência. Sabemos que nenhum relacionamento íntegro e harmonioso se torna, do dia para a noite, violento. Os sinais estão ali, mas a mulher vai relevando. É o ciúmes exacerbado sobre a roupa que a mulher usa, com quem ela se relaciona e o que faz. Em meio a essa situação, se escuta as justificativas: ‘Ele tem um temperamento difícil’, ou ‘Ele só está mostrando que se importa’. Os conflitos precisam ser resolvidos de forma saudável, e não pela submissão da mulher’. Isso não pode ser aceito”, completa a delegada.
Nesse sentido, Ana Cristina destaca ser preciso desconstruir a validação da mulher sob a ótica masculina, que culmina em preconceitos de que mulher com valor é casada e tem filhos, por exemplo. “Mas é preciso romper com os ideais arraigados e as expectativas criadas em nós desde pequenas. Sabemos o quão difícil é para uma mulher ultrapassar essas barreiras, mas é preciso. Isso vale para todas, pois a violência é cultural, perpassa classes econômicas, cor e idade”, sustenta.
Protocolo de ação
Desde 8 de março de 2017, a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) passou a usar o protocolo de enquadramento das mortes violentas, suicídios e desaparecimentos de mulheres no crime de feminicídio. A ação estabelece uma forma de apuração e, em homicídios, perícias específicas nos corpos e locais dos crimes, realizadas por especialistas dos institutos de Medicina Legal (IML) e Criminalística (IC).
De acordo com Ana Cristina Santiago, o protocolo do Distrito Federal é pioneiro. “Temos ótimos resultados, que possibilitam a finalização do inquérito policial em uma média de 40 dias. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública) pegou o modelo do protocolo e vai submeter a análise para adoção em todo o Brasil”, afirma.
Também com o objetivo de reduzir o número de crimes, após análise estatística das regiões com maior índice de violência doméstica, a Polícia Civil pretende abrir o novo Complexo Regional de Polícia, em Ceilândia, que funcionará na atual 15ª Delegacia de Polícia (Ceilândia Centro). Assim, a cidade terá, além de uma Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, um Instituto de Medicina Legal.
Números do DF
Fora do contexto doméstico
Os assassinatos da advogada e funcionária do Ministério da Educação (MEC) Letícia Sousa Curado de Melo, 26, e da auxiliar de cozinha Genir Pereira de Sousa, 47, vítimas do cozinheiro Marinésio dos Santos Olinto, evidenciaram uma nova interpretação da lei no Distrito Federal. Até o registro destes casos, em 23 de agosto e 2 de junho de 2019, respectivamente, os homicídios qualificados pela questão de gênero ocorreram no âmbito doméstico. À época dos crimes, aflorou-se a discussão sobre se as mortes poderiam ou não serem enquadradas como feminicídio.
Segundo o promotor Raoni Maciel, do Núcleo do Tribunal do Júri e Defesa da Vida do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), do ponto de vista jurídico, a Lei do Feminicídio é considerada recente, daí o motivo de uma avaliação mais criteriosa. “Temos um ritmo mais cuidadoso, para que os agentes públicos possam entender e aplicar a lei. O feminicídio dentro do contexto doméstico trouxe certa facilidade de entendimento, pois faz alusão à Lei Maria da Penha. Mas a legislação contempla outro tipo de feminicídio, que é aquele cometido fora do contexto doméstico e familiar, na rua, por assim dizer”, explica. Nesses casos, cada crime é analisado de maneira isolada. “É o tribunal que delibera se o réu será ou não pronunciado (ao tribunal do júri) e por quais crimes. Cada julgamento traz um ensinamento”, completa.
Na análise de Paulo Giordano, juiz do Tribunal do Júri de Brasília e juiz-assistente da presidência do Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT), o feminicídio fora do contexto doméstico é uma esfera que precisa ser estudada, uma vez que a lei determina apenas que o assassinato pode ocorrer pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
“É necessária uma discussão acerca do que é matar a mulher em razão do sexo feminino. Precisamos fazer um debate para enxergarmos as nuances do ponto de vista sociológico e antropológico. Assim, poderemos entender qual é o papel da mulher dentro da sociedade e sobre a relação de poder entre homens e mulheres. Não é qualquer crime contra a mulher que se enquadra como feminicídio”, adverte Giordano.
O juiz destaca pontos que podem levar ao enquadramento de feminicídio fora do contexto familiar. “Para que uma pessoa responda criminalmente por um fato, todas as provas precisam se amoldar perfeitamente à qualificação. Contudo, quando uma lei é criada, não é possível especificar todos os casos possíveis dentro daquele delito. Há uma margem interpretativa para o juiz. É isso o que ocorre com o feminicídio”, observa.
“Portanto, é fundamental o amadurecimento da lei. Isso é possível por meio de debate entre o que o Ministério Público leva para análise do Judiciário e que é contraposto pela defesa (do agressor). Assim, o juiz analisará cada caso. Mas a discussão precisa ser maior, e a própria sociedade precisa estar presente, cobrando. Não para que a decisão do juiz seja por pressão, mas para que ocorra a reflexão”, finaliza o magistrado.
Os assassinatos da advogada e funcionária do Ministério da Educação (MEC) Letícia Sousa Curado de Melo, 26, e da auxiliar de cozinha Genir Pereira de Sousa, 47, vítimas do cozinheiro Marinésio dos Santos Olinto, evidenciaram uma nova interpretação da lei no Distrito Federal. Até o registro destes casos, em 23 de agosto e 2 de junho de 2019, respectivamente, os homicídios qualificados pela questão de gênero ocorreram no âmbito doméstico. À época dos crimes, aflorou-se a discussão sobre se as mortes poderiam ou não serem enquadradas como feminicídio.
Segundo o promotor Raoni Maciel, do Núcleo do Tribunal do Júri e Defesa da Vida do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), do ponto de vista jurídico, a Lei do Feminicídio é considerada recente, daí o motivo de uma avaliação mais criteriosa. “Temos um ritmo mais cuidadoso, para que os agentes públicos possam entender e aplicar a lei. O feminicídio dentro do contexto doméstico trouxe certa facilidade de entendimento, pois faz alusão à Lei Maria da Penha. Mas a legislação contempla outro tipo de feminicídio, que é aquele cometido fora do contexto doméstico e familiar, na rua, por assim dizer”, explica. Nesses casos, cada crime é analisado de maneira isolada. “É o tribunal que delibera se o réu será ou não pronunciado (ao tribunal do júri) e por quais crimes. Cada julgamento traz um ensinamento”, completa.
Na análise de Paulo Giordano, juiz do Tribunal do Júri de Brasília e juiz-assistente da presidência do Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT), o feminicídio fora do contexto doméstico é uma esfera que precisa ser estudada, uma vez que a lei determina apenas que o assassinato pode ocorrer pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
“É necessária uma discussão acerca do que é matar a mulher em razão do sexo feminino. Precisamos fazer um debate para enxergarmos as nuances do ponto de vista sociológico e antropológico. Assim, poderemos entender qual é o papel da mulher dentro da sociedade e sobre a relação de poder entre homens e mulheres. Não é qualquer crime contra a mulher que se enquadra como feminicídio”, adverte Giordano.
O juiz destaca pontos que podem levar ao enquadramento de feminicídio fora do contexto familiar. “Para que uma pessoa responda criminalmente por um fato, todas as provas precisam se amoldar perfeitamente à qualificação. Contudo, quando uma lei é criada, não é possível especificar todos os casos possíveis dentro daquele delito. Há uma margem interpretativa para o juiz. É isso o que ocorre com o feminicídio”, observa.
“Portanto, é fundamental o amadurecimento da lei. Isso é possível por meio de debate entre o que o Ministério Público leva para análise do Judiciário e que é contraposto pela defesa (do agressor). Assim, o juiz analisará cada caso. Mas a discussão precisa ser maior, e a própria sociedade precisa estar presente, cobrando. Não para que a decisão do juiz seja por pressão, mas para que ocorra a reflexão”, finaliza o magistrado.
As faces do feminicídio
Desde que a lei passou a vigorar, em 9 de março de 2015, até fevereiro deste ano, 109 mulheres morreram pela condição de gênero. Confira alguns dos casos:
Geral
Principais restrições do calendário eleitoral começam em julho
Primeiro turno das eleições municipais será no dia 6 de outubro
A partir deste mês, começam a valer as principais restrições previstas no calendário eleitoral para impedir o uso da máquina pública a favor de candidatos às eleições municipais de outubro. As vedações estão previstas na Lei das Eleições (Lei 9.504/1997).
No dia 6 de julho, três meses antes do pleito, começam as restrições para contratação e demissão de servidores públicos. A partir do dia 20, os partidos podem realizar suas convenções internas para a escolha dos candidatos aos cargos de prefeito, vice-prefeito e vereadores.
O primeiro turno das eleições será no dia 6 de outubro. O segundo turno da disputa poderá ser realizado em 27 de outubro nos municípios com mais de 200 mil eleitores, nos quais nenhum dos candidatos à prefeitura atingiu mais da metade dos votos válidos, excluídos os brancos e nulos, no primeiro turno.
Confira as principais restrições
6 de julho
Nomeação de servidores – a partir do próximo sábado (6), três meses antes do pleito, os agentes públicos não podem nomear, contratar e demitir por justa causa servidores públicos. A lei abre exceção para nomeação e exoneração de pessoas que exercem função comissionada e a contratação de natureza emergencial para garantir o funcionamento de serviços públicos essenciais.
Concursos – A nomeação de servidores só pode ocorrer se o resultado do concurso foi homologado até 6 de julho.
Verbas – Os agentes públicos também estão proibidos de fazer transferência voluntária de recursos do governo federal aos estados e municípios. O dinheiro só pode ser enviado para obras que já estão em andamento ou para atender situações de calamidade pública.
Publicidade estatal – A autorização para realização de publicidade institucional de programas de governo também está proibida. Pronunciamentos oficiais em cadeia de rádio e televisão e a divulgação de nomes de candidatos em sites oficiais também estão vedados e só podem ocorrer com autorização da Justiça Eleitoral.
Inauguração de obras – Também fica proibida a participação de candidatos em inaugurações de obras públicas.
20 de julho
Convenções – A partir do dia 20 de julho, os partidos políticos e as federações poderão escolher seus candidatos para os cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador. O prazo para realização das convenções termina em 5 de agosto.
Gastos de campanha – Na mesma data, o TSE divulgará o limite de gastos de campanha para os cargos que estarão em disputa.
Direito de resposta – Também começa a valer a possiblidade de candidatos e partidos pedirem direito de resposta contra reportagens, comentários e postagens que considerarem ofensivas na imprensa e nas redes sociais.
Agência Brasil
Geral
Ex-diretores da Americanas alvos da PF entram na lista da Interpol
Dois investigados encontram-se foragidos no exterior
Os dois ex-diretores do grupo Americanas investigados pela Operação Disclosure da Polícia Federal (PF) foram incluídos na lista de Difusão Vermelha da Interpol, a polícia internacional. Segundo a PF, os dois alvos de prisão preventiva encontram-se foragidos no exterior.
Com a inclusão dos nomes, as polícias de outros países sabem que eles são procurados no Brasil e podem prendê-los, se decidirem por isso.
Os ex-diretores, cujos nomes não foram divulgados pela PF, são acusados de participação em fraudes contábeis que chegam a R$ 25,3 bilhões, segundo a Polícia Federal (PF). Além dos mandados de prisão preventiva, os agentes cumprem nesta quinta-feira (27), 15 mandados de busca e apreensão e o sequestro de bens e valores autorizados pela Justiça, que somam mais de R$ 500 milhões.
As investigações, que contaram com a colaboração da atual diretoria do grupo Americanas, também tiveram a participação do Ministério Público Federal (MPF) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
De acordo com a PF, os alvos da operação praticaram fraudes contábeis relacionadas a operações de risco sacado, que consiste numa operação na qual a varejista consegue antecipar o pagamento a fornecedores por meio de empréstimo junto aos bancos.
“Também foram identificadas fraudes envolvendo contratos de verba de propaganda cooperada (VPC), que consistem em incentivos comerciais que geralmente são utilizados no setor, mas no presente caso eram contabilizadas VPCs que nunca existiram”, informou a PF, por meio de nota, divulgada no início da manhã.
Também por meio de nota, o grupo Americanas informou que reitera sua confiança nas autoridades que investigam o caso “e reforça que foi vítima de uma fraude de resultados pela sua antiga diretoria”. De acordo com a empresa os ex-diretores manipularam, de forma intencional, os controles internos existentes. “A Americanas acredita na Justiça e aguarda a conclusão das investigações para responsabilizar judicialmente todos os envolvidos”.
MPF
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), foi formalizado um acordo de colaboração premiada com dirigentes da empresa que manifestaram interesse em colaborar com as investigações. Além disso, houve intensa cooperação com um comitê externo constituído pela empresa para apurar as fraudes.
Ainda de acordo com o órgão, foram ouvidos colaboradores, investigados, realizadas perícias e análises em materiais fornecidos pela empresa e pelos colaboradores.
Em junho de 2023, segundo o MPF, a empresa comunicou oficialmente ao mercado que encontrou inconsistências nas demonstrações financeiras, reforçando a existência da fraude contábil.
*Matéria alterada às 13h18min para acréscimo de informações.
Agência Brasil
Geral
Como desnutrição, toxinas na água e agrotóxicos criaram ‘bolsões de microcefalia’ no Brasil
Pesquisadora dedicou a última década de sua carreira a entender por que algumas regiões brasileiras — como o Nordeste e o Centro-Oeste — tiveram uma maior frequência de casos de microcefalia em bebês cujas mães foram infectadas pelo vírus zika durante a gestação.
A biomédica Patrícia Garcez se encaixa na rara categoria de pessoas que estavam no lugar certo, na hora certa.
Durante sua formação acadêmica, realizada em grande parte na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela decidiu entender a fundo uma malformação que até então era muito rara e pouco conhecida: a microcefalia, marcada pelo desenvolvimento inadequado do cérebro durante a gestação.
“Lembro de conversar com uma amiga que trabalha com marketing e, ao explicar o que eu pesquisava, ela me perguntou: ‘Por que você estuda isso, se é algo tão raro? Não seria melhor focar em algo que seja mais comum e que afeta mais pessoas?'”, lembra Garcez.
“Mas isso nunca foi uma questão para mim. Na minha mente de formação biológica, o fato de a condição ser rara não significa que eu vou negligenciá-la ou ignorá-la”, complementa a pesquisadora.
Logicamente, essa conversa com a amiga aconteceu antes de 2015. Naquele ano, o zika, um vírus pouco conhecido, desembarcou no Brasil e foi inicialmente caracterizado como um “primo-irmão” da dengue, transmitido pelo mesmo Aedes aegypti e responsável por sintomas mais leves.
Mas a realidade mostrou-se muito mais complexa. Em maternidades espalhadas pelo país, os médicos começaram a notar um aumento anormal de casos de microcefalia — justamente a condição estudada por Garcez.
As suspeitas de que o zika poderia estar por trás do fenômeno logo se confirmaram, graças a uma série de pesquisas publicadas por cientistas brasileiros (incluindo ela própria) ao longo de 2015 e 2016.
“Quando começou o boom de microcefalia, eu não conseguia dormir… Lia tudo o que saía na imprensa e pensava em como poderia contribuir, já que sou especialista no assunto e não há muitos pesquisadores nessa área”, destaca ela.
Foi assim que começaram a surgir ideias, projetos, colaborações e estudos. À época, Garcez estava vinculada à UFRJ, instituição pela qual publicou todos os artigos que serão citados ao longo da reportagem. Mais recentemente, ela assumiu um cargo de professora no King’s College, uma instituição acadêmica sediada em Londres, no Reino Unido.
Uma das inquietações de Garcez na relação entre zika e microcefalia envolvia a desproporção de casos em determinadas regiões.
“Até pouco antes da pandemia de covid-19, o Brasil concentrava cerca de 95% dos casos da síndrome congênita do zika (SCZ)”, calcula ela.
A SCZ é o termo usado pelos especialistas para descrever todas as alterações no feto em desenvolvimento que são provocadas pela infecção por este vírus — que incluem a microcefalia, além de alterações visuais, auditivas, motoras…
A biomédica destaca que uma pesquisa realizada na Flórida, nos Estados Unidos, estimou que 1% das grávidas infectadas pelo zika transmitiram o vírus para o feto, durante a gestação.
“No Brasil, essa taxa variou entre 3%, 13%, até 40%, a depender de como cada estudo foi feito”, compara ela.
E, mesmo dentro do país, há diferenças importantes de acordo com a localidade dos casos.
Um estudo feito pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) Bahia e outras instituições destaca que, entre setembro de 2015 e abril de 2016, o Brasil teve 41.473 casos prováveis de zika entre gestantes.
A maioria dessas infecções aconteceu no Sudeste (44,6% do total), seguido por Nordeste (26,8%), Sul (26,8%), Centro-Oeste (12,7%) e Norte (11%).
No entanto, dos 1.950 casos de microcefalia relacionados à infecção identificados nesse período em todo o Brasil, 70,4% dos quadros de SCZ aconteceram no Nordeste.
“O que explica uma assimetria tão grande? Por que algumas pessoas são mais atingidas que outras?”, pergunta Garcez.
O grupo de pesquisadores do qual ela faz parte começou a encontrar algumas respostas para essas questões — e, embora ainda restem muitas dúvidas pelo caminho, eles já descobriram que a desnutrição, algumas toxinas presentes na água e certos agrotóxicos ajudam a entender o que aconteceu no Brasil durante o surto de zika.
Falta proteína no prato
Uma das primeiras hipóteses que a biomédica resolveu investigar envolvia a nutrição materna. Será que a qualidade da dieta da gestante poderia ter alguma influência no desenvolvimento de uma microcefalia no bebê?
“Fizemos parcerias com epidemiologistas, que foram às regiões com mais casos de microcefalia e identificaram quadros de desnutrição severa, acima da média, entre muitas dessas mulheres”, explica Garcez.
Com base nesse dado, o grupo resolveu avaliar se a falta de proteínas na alimentação da gestante poderia de alguma maneira contribuir para que o zika conseguisse invadir a placenta e causar estragos no cérebro em desenvolvimento do feto.
Os cientistas focaram no grupo das proteínas, que inclui carnes, ovos, lácteos, entre outros, porque esses alimentos são geralmente os mais caros da cesta básica — e, por essa razão, são menos consumidos por famílias que enfrentam dificuldades econômicas.
As autoridades de saúde estabelecem que uma gestante deve comer entre 60 e 100 gramas de proteína por dia.
“E essa é uma meta que pode ser atingida facilmente se a pessoa tem uma dieta normal, sem restrições financeiras”, observa Garcez.
Para testar essa hipótese, os especialistas restringiram a dieta de camundongos gestantes no laboratório, que passaram a ter acesso a menos proteínas do que o indicado e também foram infectados com o zika.
Os resultados mostram que essa combinação (restrição de proteínas + infecção por zika) levou a alterações severas na estrutura da placenta e no crescimento do embrião. Os ratinhos que nasceram apresentavam uma menor formação de neurônios e um cérebro de tamanho reduzido — ou seja, um quadro similar à SCZ.
O mesmo não aconteceu com os camundongos gestantes que só comeram menos proteínas ou aqueles que foram apenas infectados com o zika. Isso sugere que a junção dos dois fatores ajuda a entender parte desse cenário.
“Suspeitamos que a desnutrição materna pode causar uma supressão do sistema imune, de modo que o vírus consegue atravessar a placenta e causar danos”, sugere a biomédica.
Quando o zika ultrapassa a barreira placentária — especialmente nos primeiros meses de gestação, quando a formação do cérebro está nas etapas iniciais — o estrago é quase certo.
“O zika tem uma capacidade notável de infectar as células-tronco neurais, que são as ‘mães’ de todos os neurônios e formam o Sistema Nervoso Central”, ensina a biomédica.
Seca e cianobactérias
Durante as pesquisas, Garcez conversou com o biólogo Renato Molica, especialista em cianobactérias, um tipo de micro-organismo que vive na água e obtém energia por meio da fotossíntese.
“Ele me contou que havia uma espécie de cianobactéria presente em reservatórios de água, especialmente em regiões de muita seca, que produz uma substância neurotóxica, com capacidade de afetar o cérebro”, lembra ela.
A cianobactéria em questão é a Raphidiopsis raciborskii, que fabrica uma substância chamada saxitoxina.
Vale lembrar que, a partir de 2012, poucos anos antes da chegada do zika ao Brasil, a região Nordeste enfrentou uma das piores secas de sua história. Os mais afetados precisaram recorrer às águas de reservatórios, que muitas vezes acumulam esses micro-organismos.
Será que uma coisa tinha a ver com a outra? O consumo da saxitoxina poderia de alguma maneira “turbinar” os efeitos do zika no cérebro do bebê em formação?
Os experimentos do grupo de Garcez mostraram que sim: o contato com a substância neurotóxica dobrou a quantidade de células neurais mortas pelo zika em testes com organoides, ou “minicérebros” cultivados em laboratório.
“Também colocamos essa cianobactéria na água consumida por camundongos gestantes, cujos fetos ficaram mais suscetíveis à SCZ”, descreve Garcez.
“Essa toxina já causa um certo desarranjo nas células-tronco neurais. Mas, junto com o zika, esse efeito fica muito pior”, complementa ela.
Essa observação acrescentou mais uma evidência que ajuda a entender a discrepância nos números de microcefalia por região. Mas havia outras dúvidas e descobertas pela frente.
Ação dos agrotóxicos
Garcez lembra que o Centro-Oeste também apresentou números mais elevados de microcefalia durante o surto de 2015 e 2016.
Um boletim epidemiológico publicado pelo Ministério da Saúde em setembro de 2022 aponta que essa foi a segunda região mais afetada pela SCZ.
“E lá a condição socioeconômica é mais elevada que a do Nordeste e não houve aquela questão da seca”, observa a cientista.
“Mas sabemos que essa é uma região que usa grandes quantidades de agrotóxicos e herbicidas, por ter muitas terras dedicadas à agricultura”, complementa ela.
Para avaliar se essas substâncias usadas nas plantações poderiam ter alguma influência nesses casos, o grupo de Garcez fez um mapa dos agrotóxicos mais aplicados no país.
“Depois dessa triagem inicial, encontramos o 2,4-D, um herbicida muito usado no Centro-Oeste”, destaca a biomédica.
Ao fazer os testes em laboratório, os pesquisadores viram aquele mesmo efeito sinérgico observado com a desnutrição e as toxinas das cianobactérias: os camundongos gestantes que foram infectados com zika e tomaram água com 2,4-D tinham maior risco de gerar descendentes com problemas no desenvolvimento cerebral.
“E as quantidades de 2,4-D que foram usadas no estudo estavam dentro do considerado aceitável”, destaca Garcez.
Vale destacar que esse último estudo ainda não foi publicado em revistas acadêmicas, algo que deve acontecer nos próximos meses. Essa etapa é fundamental para que o experimento seja revisado por especialistas independentes.
Quem é o verdadeiro culpado
Garcez lembra que, apesar da importância de conhecer todos os cofatores que ampliam a susceptibilidade à microcefalia, é preciso estabelecer as prioridades e os focos.
“O zika é o grande vilão dessa história”, lembra ela.
A pesquisadora também conta que algumas suspeitas não se comprovaram nas pesquisas.
“Nós testamos o herbicida glifosato, por exemplo, mas não observamos qualquer sinergia com o zika”, cita ela.
A biomédica acrescenta que algumas pesquisas feitas por outros grupos sugerem que infecções prévias por dengue podem alterar o risco de transmissão vertical do zika (da gestante para o feto em formação), embora esse tema ainda seja controverso.
“Outro ponto explorado é a questão do aborto. Sabemos que mulheres de algumas regiões do país têm maior acesso ao procedimento, mesmo que ele não esteja legalizado no Brasil nesses casos”, acrescenta Garcez.
Ou seja: pode ser que algumas gestantes que tiveram zika e receberam o diagnóstico de SCZ no bebê em desenvolvimento tenham optado por não seguir com a gravidez adiante.
“E isso pode confundir e mascarar um pouco esse mapa da SCZ”, diz ela.
Por fim, a biomédica destaca que ainda há muito a se descobrir sobre o zika e os “bolsões de microcefalia”.
“Nós precisamos entender melhor por que algumas mulheres têm mais propensão a transmitir o zika para o feto. Será que há alguma característica do vírus ou da genética das pacientes que aumente o risco de SCZ?”, questiona a especialista.
“Também precisamos conhecer quais são as consequências da síndrome congênita a longo prazo. Como esses pacientes que tiveram o cérebro afetado pelo zika vão se desenvolver? Como elas estarão na fase adulta? Eles conseguirão ser independentes ou estudar?”, complementa ela.
Encontrar essas respostas é importante não apenas para passar a limpo o surto de zika que ocorreu há quase uma década — mas também para lidar com as futuras crises relacionadas a esse vírus.
“O surto pode acontecer de novo, pois o zika continua a circular e o mosquito Aedes aegypti está sempre por aí. Além disso, as novas gerações não estarão imunes a essa infecção”, conclui ela.
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